terça-feira, dezembro 28, 2010

A conquista

Como o fogo se ateia com fogo, também a igreja existe pela evangelização, pelo ganhar almas. Quando a igreja perde de vista o perdido, morre, assim como o fogo se extingue por falta de novo material a ser queimado.
Ide... Pregai... Fazei discípulos... Dai testemunho a todas as nações, a toda criatura no poder do Espírito Santo.
Eis, na essência, o último grande mandamento que Cristo deu à Sua Igreja: evangelizai o mundo todo — é a Sua ordem de marcha! Ele não disse civilizai todas as criaturas humanas, nem mesmo cristianizai o mundo, mas pregai, proclamai o Evangelho ao mundo todo.
Os primeiros cristãos podiam escusar-se por não atingir o mundo todo. Faltavam-lhe os meios e o equipamento que poderiam acelerar a obra da Evangelização. Não havia estradas de ferro, aviões ou poderosos e rápidos transatlânticos; não havia rádio, televisão, impressoras, aparelhagem audiovisual ou cinematografia. Não obstante, no poder do Espírito Santo, evangelizaram a maior parte do mundo então conhecido.
No princípio, a evangelização, levada a cabo pela Igreja, conseguiu atingir o Egito e o Norte da África, a ponto de, em certa época, tais regiões apresentarem centenas de igrejas evangélicas.
Porém, em vez de prosseguir em busca dos lugares mais distantes, passou a discutir doutrinas.
E assim a controvérsia tomou o lugar da evangelização. E o resultado? Em vez do fervente zelo e visão, que certamente teria impelido os cristãos para o Sul através das escaldantes areias do Saara até os jâgais da África Central e Meridional, a Igreja se mostrou paralisada e começou a declinar à medida que o mundo mais se envolvia em trevas.
Enquanto a Igreja contendia e discutia muitas coisas não essenciais, o inimigo conseguia vitórias e escravizava milhões.
Consequentemente, o Norte da África tornou-se maometano e, por séculos, ali quase não se brilhava a luz do Evangelho.
Pense nisso, leitor amigo. Em certa época, alguns dos maiores teólogos do cristianismo vieram do Norte da África. Hoje, todo o país está dominado pela rígida religião maometana.
Que aconteceria, se isso se desse em nosso país cristão? O único caminho que, por certo, impedirá o aparecimento do novo tipo de paganismo moderno em nossa pátria é conservar bem fresca, no íntimo de cada servo de Jesus, a visão da evangelização mundial.
Quando um cristão para de ganhar almas, por esse ou por aquele meio, cessa de arder em sua alma o fogo divino. E o resultado é muito triste e lamentável: falta de interesse e de entusiasmo, e queda espiritual. Então o mundanismo avança para preencher o vácuo. Que horrível tragédia!
Um dos preceitos mais desafiadores já apresentados ao cristão é esse: a tarefa suprema da Igreja na evangelização do mundo.
A única defesa da Igreja é ganhar almas.



Ela nasceu no ardor da evangelização. Estará arruinada sempre que seus membros deixarem de alcançar o perdido.
Hoje, no mundo, vivem cerca de dois bilhões de almas que nunca foram alcançadas pelo Evangelho de Cristo!
Hoje mais de um quarto de todas as nações, um terço da superfície da Terra, e metade da população mundial está sob a influência do comunismo ateu.
Será que, como cristão, estamos cientes disso? Será? Lembramo-nos de que, como indivíduos, somos a Igreja de Cristo? Para que existe no mundo a Igreja Cristã?
Ela não é uma grande arca, em que podem flutuar os favoritos, felizes, e sem cuidado algum por sobre o mar da vida até chegar à praia áurea.
Ela não é uma companhia de seguros, à qual se podem pagar prêmios e se ficar inteiramente livre do fogo do inferno!
A Igreja não é um clube social, cujos membros se reúnem ocasionalmente para desfrutar da companhia uns dos outros, divertirem-se, e trocar idéias!
Não é uma casa de saúde em que os deformados espirituais e os moralmente anêmicos tratam de seus males hereditários. Não.
A Igreja de Cristo é uma instituição ganhadora de almas, a proclamar, a tempo e fora de tempo, que Jesus Cristo salva a todos os homens.
Ela é um farol, cujos raios da luz evangélica alumiam todos os cantos da Terra, mesmo os mais distantes e entenebrecidos.
E um poderoso exército em marcha, cujos soldados estão resolvidos a invadir todas as pátrias para fazer tremular em cada nação a bandeira de Cristo! Como soldados do rei dos Reis, a tarefa dos cristãos não é construir fortes nem acumular reservas de munições, mas conquistar o território inimigo, para tomar deles um povo para o seu nome (At 15.14).
Napoleão certa vez disse: "A conquista fez de mim aquilo que sou, e a conquista deve encorajar-me!"
Isso é também verdade no que se aplica à Igreja de Cristo. A própria existência da Igreja depende de sua obediência à grande comissão do Senhor. Ela existe para buscar e salvar o que está perdido.
Que é que o leitor amigo está fazendo nesse sentido? Está esperando que a sua denominação faça a obra de evangelização? Cristo espera muito de você! Almas — almas ainda não alcançadas — estão esperando muito de você!



T.L.Osborn


domingo, dezembro 19, 2010

CONDUTA CRISTÃ - 12. A FÉ II



Vou começar por dizer algo em que gostaria que to­dos prestassem a máxima atenção. E o seguinte. Se este capítulo não significar nada para você, se ele der a im­pressão de procurar responder a perguntas que você nun­ca fez, largue-o imediatamente. Não se amofine por causa dele. Existem coisas no cristianismo que podem ser compreendidas mesmo por quem está de fora, por quem ainda não é cristão; existe, por outro lado, um grande número de coisas que só podem ser compreen­didas por quem já percorreu um certo trecho da estra­da cristã. São coisas puramente práticas, embora não o pareçam. São instruções de como lidar com certas en­cruzilhadas e obstáculos da jornada, instruções que não têm sentido até que a pessoa esteja diante deles. Sem­pre que você deparar com uma frase de um escrito cristão que você não seja capaz de compreender, não se aborre­ça. Deixe-a de lado. Virá um dia, talvez anos mais tarde, em que você subitamente entenderá o que ela queria di­zer. Se não consegue entendê-la agora, é porque ela só lhe faria mal.
E claro que isso diz respeito não só aos outros, mas a mim também. O que tentarei explicar neste capítulo talvez esteja muito acima da minha compreensão. E pos­sível que eu pense que já tenha chegado lá, mas na rea­lidade não tenha. Só posso pedir aos cristãos instruídos que ouçam com muita atenção o que digo e me avisem se estiver errado; quanto aos outros, que aceitem com cautela o que for dito - como algo que ofereço por pen­sar que pode ajudar, não por ter a certeza de estar com a razão.
Estou tentando falar sobre a fé nesse segundo sen­tido, o mais elevado. Disse há pouco que essa questão surge no homem depois que ele tentou ao máximo pra­ticar as virtudes cristãs, constatou-se incapaz e chegou à conclusão de que, mesmo que tivesse conseguido, não estaria oferecendo a Deus nada que já não lhe per­tencesse. Em outras palavras, ele descobre que está fa­lido. E bom repetir: o que importa para Deus não são nossas ações enquanto tais. O que lhe importa é que sejamos criaturas de determinado tipo ou qualidade — o tipo de criaturas que ele tencionava que fôssemos quan­do nos criou -, vinculadas a ele de uma determinada maneira. Não acrescento "e vinculados uns aos outros", porque isso é uma conseqüência natural. Se você tem a atitude correta diante de Deus, inevitavelmente terá a ati­tude correta diante do próximo, da mesma forma que, quando os raios de uma roda estão bem encaixados no cubo e no aro, inevitavelmente guardam as distâncias corretas entre si. E, enquanto o homem concebe Deus como uma espécie de examinador que nos passa uma prova, ou como a outra parte numa espécie de barga­nha em que cada parte tem seus direitos e obrigações, não está ainda com a atitude correta diante de Deus. Não sabe nem o que ele é nem o que é Deus, e só poderá ter a atitude correta quando descobrir que está falido.
Quando digo "descobrir", quero dizer exatamente isso: não é o mesmo que repetir palavras como um pa­pagaio. Qualquer criança que tenha recebido a educa­ção cristã mais elementar aprende rapidamente que o homem não tem nada a oferecer a Deus que já não seja dele, e que nem isso conseguimos oferecer sem surru­piar uma parte para nós. Mas estou falando de uma des­coberta real, advinda da experiência pessoal.
Nesse sentido, só podemos descobrir que somos in­capazes de cumprir a Lei de Deus depois de tentar cumpri-la com todas as nossas forças (e fracassar em seguida). Se não tentarmos, continuaremos pensando em nosso íntimo que, se nos esforçarmos mais na próxima vez, conseguiremos ser completamente bons. Assim, em cer­to sentido, a estrada que nos leva de volta a Deus é a do esforço moral, a via da auto-superação. Mas, em outro sentido, não é o esforço que nos levará para casa. Toda a força que fazemos nos conduz ao momento crucial em que nos voltamos para Deus e lhe dizemos: "O Se­nhor tem de fazer isso. Não consigo." Imploro que vo­cês não comecem a se perguntar: "Será que já cheguei a esse momento?" Não fique sentado esperando, obser­vando a própria mente para ver se o momento está che­gando. Isso o levará a tomar o bonde errado. Quando acontecem as coisas mais importantes da vida, nem sem­pre nos damos conta do que está ocorrendo. A pessoa não pára de repente e diz para si mesma: "Opa, estou crescendo!" Em geral, é só quando olha para trás que percebe o que aconteceu e reconhece que é isso que as pessoas chamam de "crescer". Isso pode ser notado até nos assuntos mais prosaicos. O homem que começa a querer saber se vai conseguir dormir ou não, com toda probabi­lidade vai passar a noite em claro. Além disso, o fenôme­no de que estou falando pode não ocorrer de repente, como ocorreu com o apóstolo Paulo ou Bunyan. Pode se dar de forma tão gradual que ninguém consiga apontar uma hora específica, ou mesmo o ano em que acon­teceu. O que interessa é a natureza da mudança em si, e não como nos sentimos quando ela ocorre. É a mudan­ça do sentimento de confiança em nossos próprios es­forços para um estado em que nos desesperamos com­pletamente e deixamos tudo nas mãos de Deus.
Sei que as palavras "deixar tudo nas mãos de Deus" podem ser entendidas de forma errada, mas vamos dei­xá-las assim por enquanto. O sentido em que um cristão deixa tudo nas mãos de Deus é que ele deposita toda a sua confiança em Cristo: confia em que, de alguma for­ma, Cristo vai dividir sua obediência humana perfeita com ele, obediência que Cristo carregou consigo do nascimento à crucificação. Cristo fará do homem uma imagem de si, compensando, de certa forma, suas de­ficiências. Na linguagem cristã, ele repartirá a sua "fi­liação", fará de nós "filhos de Deus", como ele mesmo. Se lhe agrada colocar as coisas sob essa perspectiva, Cristo nos oferece algo por nada; na verdade, oferece tudo por nada. Num sentido, toda a vida cristã se baseia em aceitar essa ofer­ta extraordinária. A dificuldade está em chegar ao pon­to de reconhecer que tudo o que fazemos e podemos fazer se resume a nada. Gostaríamos que a coisa fosse diferente, que Deus contasse nossos pontos bons e ignorasse os ruins. Ou senão, num certo sentido, podemos dizer que nenhuma tentação pode ser superada se não desistirmos de superá-la - se não jogarmos a toalha. Por outro lado, ninguém poderia "parar de tentar" da for­ma correta e pelas razões corretas se antes não tentasse com todas as suas forças. E, num outro sentido ainda, é claro que deixar tudo nas mãos de Cristo não signifi­ca que devemos parar de nos esforçar. Confiar nele sig­nifica tentar fazer tudo o que ele disse. Não há sentido em dizer que confiamos em tal pessoa se não aceitamos seus conselhos. Logo, se você realmente se entregou nas mãos dele, conclui-se daí que está tentando obedecer-lhe. No entanto, está tentando de uma forma nova, menos preocupada. Não está fazendo essas coisas para ser sal­vo, mas porque ele já começou a salvá-lo. Não está es­perando ganhar o Paraíso como recompensa das suas ações, mas quer inevitavelmente agir de uma determi­nada forma porque já tem dentro de si os primeiros e tênues vislumbres do Paraíso.
Os cristãos sempre tiveram o costume de polemi­zar sobre o que conduz o cristão à sua morada: se as boas ações ou se a fé em Cristo. Na verdade, não tenho o direito de falar sobre um assunto tão difícil, mas me parece que é como perguntar qual das lâminas de uma tesoura é a mais importante. O esforço moral sério é a única coisa que pode nos conduzir ao ponto de jogar a toalha. A fé em Cristo é a única coisa que pode nos sal­var do desespero nesse ponto: e, dessa fé, é inevitável que surjam boas ações. No passado, alguns grupos cris­tãos acusaram outros grupos cristãos de parodiar a ver­dade de duas formas. O exagero das situações talvez ajude a tornar a verdade mais clara. Um dos grupos era acusado de dizer: "As boas ações são tudo o que interessa. A melhor das boas ações é a caridade. O melhor tipo de caridade é dar dinheiro. A melhor forma de dar di­nheiro é fazer uma doação para a Igreja. Logo, faça uma doação de 10.000 libras e garantiremos sua entrada na vida eterna." A resposta a esse absurdo é que as ações feitas com essa intenção, com a idéia de que o Paraíso pode ser comprado, não são boas ações de forma alguma, mas somente especulações comerciais. Outro grupo era acusado de dizer: "A fé é tudo o que importa. Logo, se você tem fé, não importam as suas ações. Peque à von­tade, meu filho, divirta-se a valer, que para Jesus Cristo não vai fazer a mínima diferença no final." A resposta a esse absurdo é que, se o que você chama de "fé" em Cris­to não implica dar atenção ao que ele disse, ela não é fé de maneira alguma — nem Fé nem confiança, mas ape­nas a aceitação mental de alguma teoria a seu respeito.
A Bíblia encerra a discussão quando junta as duas coisas numa única sentença admirável. A primeira me­tade diz: "Ponham em ação a salvação de vocês com temor e tremor" - o que dá a idéia de que tudo depende de nós e de nossas boas ações; mas a segunda metade complementa: "Pois é Deus que efetua em vocês tanto o querer quanto o realizar" - o que dá a idéia de que Deus faz tudo e nós, nada. Esse é o tipo de coisa com a qual nos defrontamos no cristianismo. Fico perplexo, mas não surpreso. Veja você, estamos tentando compreender e separar em compartimentos estanques o que Deus faz e o que o homem faz quando se põem a trabalhar juntos. É claro que a nossa concepção inicial desse trabalho é a de dois homens que atuam em conjunto, de quem poderíamos dizer: "Ele fez isto e eu, aquilo." Porém, essa maneira de pensar não se sustenta. Deus não é as­sim. Não está só fora de você, mas também dentro: mes­mo que pudéssemos compreender quem fez o quê, não creio que a linguagem humana pudesse expressá-lo de forma apropriada. Na tentativa de expressar essa verdade, as diferentes igrejas dizem coisas diversas. Você há de cons­tatar, porém, que mesmo as que mais insistem na im­portância das boas ações lhe dirão que você precisa ter fé; e as que mais insistem na fé lhe dirão para praticar boas ações. Neste assunto, não me arrisco a ir mais longe.
Creio que todos os cristãos concordariam comigo se eu dissesse que, apesar de o cristianismo, num primeiro momento, dar a impressão de só se preocupar com a mo­ral, com deveres, regras, culpa e virtude, ele nos leva além, para fora de tudo isso e para algo completamente dife­rente. Vislumbramos então um país cujos habitantes não falam dessas coisas, a não ser, talvez, como piada. Todos eles são repletos do que chamaríamos de bondade, co­mo um espelho é repleto de luz. Eles mesmos, porém, não chamam isso de bondade. Não o chamam por nome algum. Não pensam a respeito desse assunto, pois estão ocupados demais em contemplar a fonte de onde isso provém. Mas nos aproximamos aí do ponto em que a estrada cruza o limiar deste nosso mundo. Nenhum olhar pode enxergar muito além disso; muitos olhares podem enxergar bem mais longe que o meu.

C.S.LEWIS

quarta-feira, novembro 10, 2010

CONDUTA CRISTÃ - 11. A FÉ I

11. A FÉ I
Devo falar neste capítulo sobre o que os cristãos entendem por fé. Grosso modo, a palavra "fé" é usada no cristianismo em dois sentidos, ou em dois níveis, e trata­rei primeiro de um deles e depois do outro. No primei­ro sentido, significa simplesmente a crença - aceitar ou considerar verdadeiras as doutrinas do cristianismo. Isso é bastante simples. O que provoca confusão nas pessoas - pelo menos provocava confusão em mim - é que os cristãos consideram a fé, nesse sentido, uma vir­tude. Eu queria saber como ela poderia ser uma virtu­de - o que existe de moral ou imoral em acreditar ou não acreditar num conjunto de princípios? Eu costuma­va dizer: é óbvio que todo homem são aceita ou rejeita uma determinada afirmação não por querer, mas por ha­ver provas que a confirmem ou refutem. Se ele se enga­nar sobre as provas, isso não fará dele um homem mau, apenas um homem não muito inteligente. Se ele achar que as provas indicam que a afirmação é falsa, e mesmo assim tentar acreditar nela, isso será mera estupidez.
Bem, ainda sou dessa opinião. O que eu não via en­tão — e muita gente ainda não vê — é o seguinte: eu supu­nha que, a partir do momento em que a mente huma­na aceita algo como verdadeiro, vai automaticamente continuar considerando-o verdadeiro até encontrar um bom motivo para reconsiderar essa opinião. Na verdade, eu partia do pressuposto de que a mente é completa­mente regida pela razão, o que não é verdade. Vou dar um exemplo. Minha razão tem motivos de sobra para acreditar que a anestesia geral não me asfixiará e que os cirurgiões só começarão a operar quando eu estiver com­pletamente sedado. Isso, porém, não altera o fato de que, quando eles me prendem na mesa da operação e me cobrem a face com sua tenebrosa máscara, um pânico infantil toma conta de mim. Começo a pensar que vou me asfixiar e que os médicos vão começar a cortar meu corpo antes que eu perca a consciência. Em outras pa­lavras, perco a fé na anestesia. Não é a razão que me faz perder a fé: pelo contrário, minha fé é baseada na razão. São, isto sim, a imaginação e as emoções. A batalha se dá entre a fé e a razão, de um lado, e as emoções e a ima­ginação, de outro.
Quando você pára para pensar, começa a lembrar de vários exemplos como esse. Um homem tem provas concretas de que aquela moça bonita é uma mentirosa, não sabe guardar segredos e, portanto, é alguém em quem não se deve confiar. Entretanto, no momento em que se vê a sós com ela, sua mente perde a fé no conhecimen­to que possuí e ele pensa: "Quem sabe desta vez ela seja diferente", e mais uma vez faz papel de bobo com ela, contando-lhe segredos que deveria guardar para si. Seus sentidos e emoções destruíram-lhe a fé em algo que ele sabia ser verdadeiro. Ou tomemos o exemplo do garo­to que aprende a nadar. Ele sabe perfeitamente bem que o corpo não vai necessariamente afundar na água: já viu dezenas de pessoas boiando e nadando. Mas a ques­tão principal é se ele continuará crendo nisso quando o instrutor tirar a mão, deixando-o sozinho na água – ou se vai repentinamente deixar de acreditar, entrar em pânico e afundar.
A mesma coisa acontece no cristianismo. Não que­ro que ninguém o aceite se, na balança da sua razão, as provas pesarem contra ele. Não é aí que entra a fé. Va­mos supor, entretanto, que a razão de um homem deci­da a favor do cristianismo. Posso prever o que vai acon­tecer com esse sujeito nas semanas seguintes. Chegará um momento em que receberá más notícias, terá pro­blemas ou será obrigado a conviver com pessoas descren­tes; nesse momento, de repente, suas emoções se insur­girão e começarão a bombardear sua crença. Haverá, além disso, momentos em que desejará uma mulher, sentir-se-á propenso a contar uma mentira, ficará vaidoso de si mesmo ou buscará uma oportunidade para ganhar um dinheirinho de maneira não totalmente lícita; nes­ses momentos, seria muito conveniente que o cristianis­mo não fosse a verdade. Mais uma vez, suas emoções e desejos serão artilharia pesada contra ele. Não estou fa­lando de momentos em que ele venha a descobrir no­vas razões contrárias ao cristianismo. Essas razões têm de ser enfrentadas, e isso, de qualquer modo, é um assunto completamente diferente. Estou falando é dos meros sentimentos que se insurgem contra ele.
A fé, no sentido em que estou usando a palavra, é a arte de se aferrar, apesar das mudanças de humor, àquilo que a razão já aceitou. Pois o humor sempre há de mudar, qualquer que seja o ponto de vista da razão. Agora que sou cristão, há dias em que tudo na religião parece muito improvável. Quando eu era ateu, porém, passava por fases em que o cristianismo parecia probabilíssimo. A rebelião dos humores contra o nosso eu ver­dadeiro virá de um jeito ou de outro. E por isso que a fé é uma virtude tão necessária: se não colocar os humores em seu devido lugar, você não poderá jamais ser um cristão firme ou mesmo um ateu firme; será apenas uma criatura hesitante, cujas crenças dependem, na ver­dade, da qualidade do clima ou da sua digestão naque­le dia. Conseqüentemente, temos de formar o hábito da fé.
O primeiro passo para que isso aconteça é reco­nhecer que os sentimentos mudam. O passo seguinte, se você já aceitou o cristianismo, é garantir que algumas de suas principais doutrinas sejam mantidas deliberadamente diante dos olhos de sua mente por alguns mo­mentos do dia, todos os dias. É por esse motivo que as orações diárias, as leituras religiosas e a freqüência aos cultos são partes necessárias da vida cristã. Temos de nos recordar continuamente das coisas em que acreditamos. Nem essa crença nem nenhuma outra podem perma­necer vivas automaticamente em nossa mente. Têm de ser alimentadas. Aliás, se examinarmos um grupo de cem pessoas que perderam a fé no cristianismo, me pergun­to quantas delas o terão abandonado depois de conven­cidas por uma argumentação honesta. Não é verdade que a maior parte das pessoas simplesmente se afasta, como que levadas pela correnteza?
Volto-me agora para a fé no seu segundo sentido, o mais elevado: será o assunto mais difícil de que terei tratado até aqui. Para abordá-lo, retorno ao tópico da humildade. Você há de se lembrar que eu disse que o primei­ro passo em direção à humildade era dar-se conta do próprio orgulho. Acrescento agora que o segundo passo consiste em empenhar um esforço dedicado para pra­ticar as virtudes cristãs. Uma semana não basta. As coisas vão de vento em popa na primeira semana. Experimen­te seis semanas. Até lá, depois de sucumbir e voltar à estaca zero, ou ter decaído para um ponto ainda inferior, teremos descoberto algumas verdades a respeito de nós mesmos. Nenhum homem sabe realmente o quanto é mau até se esforçar muito para ser bom. Circula por aí a idéia tola de que as pessoas virtuosas não conhecem as tentações. Trata-se de uma mentira deslavada. Só os que tentam resistir às tentações sabem quão fortes elas são. Afinal de contas, para conhecer a força do exército alemão, temos de enfrentá-lo, e não entregar as armas. Para conhecer a intensidade do vento, temos de andar contra ele, e não deitar no chão. Um homem que cede à tentação em cinco minutos não tem a menor idéia de como ela seria uma hora depois. Por esse motivo, as pes­soas más, em certo sentido, sabem muito pouco a respei­to da maldade. Na medida em que sempre se rendem, levam uma vida protegida. É impossível conhecer a for­ça do mal que se esconde em nós até o momento em que decidimos enfrentá-lo; e Cristo, por ter sido o úni­co homem que nunca caiu em tentação, é também o único que conhece a tentação em sua plenitude - o mais realista de todos os homens. Pois bem. A principal coi­sa que aprendemos quando tentamos praticar as virtu­des cristãs é que fracassamos. Se tínhamos a idéia de que Deus nos impunha uma espécie de prova na qual po­deríamos merecer passar por tirar boas notas, essa idéia tem de ser eliminada. Se tínhamos a idéia de uma es­pécie de barganha — a idéia de que poderíamos cum­prir a parte que nos cabe no contrato e deixar Deus em dívida conosco, de tal modo que, por uma questão de justiça, ele ficasse obrigado a cumprir a parte dele —, ela deve ser eliminada também.
Creio que quantos possuem uma vaga crença em Deus acreditam, até se tornarem cristãos, nessa idéia da prova ou da barganha. O primeiro resultado do verdadei­ro cristianismo é o de reduzir essa idéia a pó. Quando a vêem reduzida a pó, certas pessoas chegam à conclusão de que o cristianismo é um embuste e dele desistem. Essa gente parece imaginar que Deus é extremamente simpló­rio. Na verdade, ele sabe de tudo isso. Uma das intenções do cristianismo é justamente reduzir essa idéia a pó. Deus está à espera do momento em que você vai descobrir que jamais conseguirá tirar a nota mínima para passar nesse exame, e não poderá jamais deixá-lo em dívida.
Com isso vem outra descoberta. Todas as faculdades que você possui, sua faculdade de pensar ou de mover os membros a cada momento, lhe são dadas por Deus. Mesmo se dedicasse cada momento de sua vida exclusi­vamente ao seu serviço, você não poderia dar-lhe nada que, em certo sentido, já não lhe pertencesse. Logo, quando uma pessoa diz que faz algo para Deus ou lhe dá algo, é como se fosse uma criança pequena que inter­pelasse o pai e lhe pedisse: "Papai, me dê cinqüenta cen­tavos para lhe comprar um presente de aniversário." E claro que o pai dá o dinheiro e fica contente com o ges­to do filho. Tudo é muito bonito e muito correto, mas só um imbecil acharia que o pai lucrou cinqüenta cen­tavos com a transação. Quando o homem descobre es­sas duas coisas, Deus pode realmente começar a agir. E depois disso que a verdadeira vida começa. O homem agora está desperto. Podemos passar a discorrer sobre o segundo sentido da palavra "fé".

C.S.LEWIS

segunda-feira, outubro 18, 2010

CONDUTA CRISTÃ - 10. A ESPERANÇA

10. A ESPERANÇA
A esperança é uma das virtudes teológicas. Isso quer dizer que (ao contrário do que o homem moderno pen­sa) o anseio contínuo pelo mundo eterno não é uma forma de escapismo ou de auto-ilusão, mas uma das coi­sas que se espera do cristão. Não significa que se deve deixar o mundo presente tal como está. Se você estudar a história, verá que os cristãos que mais trabalharam por este mundo eram exatamente os que mais pensavam no outro mundo. Os apóstolos, que desencadearam a con­versão do Império Romano, os grandes homens que erigiram a Idade Média, os protestantes ingleses que abo­liram o tráfico de escravos - todos deixaram sua marca sobre a Terra precisamente porque suas mentes estavam ocupadas com o Paraíso. Foi quando os cristãos deixa­ram de pensar no outro mundo que se tornaram tão incompetentes neste aqui. Se você aspirar ao Céu, ga­nhará a Terra "de lambuja"; se aspirar à Terra, perderá ambos. Essa regra parece esquisita, mas pode-se obser­var algo semelhante em outros assuntos. A saúde é uma grande bênção, mas, no momento em que fazemos dela um dos nossos principais objetivos, nos tornamos hi­pocondríacos e passamos a imaginar que há algo de er­rado conosco. Só nos mantemos saudáveis na medida em que queremos outras coisas além da saúde: comida, jogos, trabalho, lazer, a vida ao ar livre. Do mesmo mo­do, nunca conseguiremos salvar a civilização enquanto for esse o nosso principal objetivo. Temos de aprender a querer outra coisa ainda mais do que queremos isso.
A maioria de nós acha muito difícil desejar o "Pa­raíso" - a não ser que por esse nome queiramos dizer o encontro com os amigos que já morreram. Uma das ra­zões dessa dificuldade é que não tivemos uma boa forma­ção: toda a educação atual tende a fixar nossa atenção neste mundo. Outra razão é que, quando o verdadeiro anseio pelo Paraíso está presente em nós, não o reconhe­cemos. A maior parte das pessoas, se tivesse aprendido a examinar profundamente seus corações, saberia que querem, e querem com veemência, algo que não pode ser alcançado neste mundo. Existem aqui coisas prazerosas de todo tipo que nos prometem isso que queremos, mas que nunca cumprem o prometido. Aquele anseio que nasce em nós quando nos apaixonamos pela primei­ra vez, quando pela primeira vez pensamos numa terra estrangeira, quando começamos a estudar um assunto que nos entusiasma, é um anseio que nenhum casamen­to, viagem ou estudo pode realmente satisfazer. Não es­tou falando aqui do que costumam chamar de casa­mentos infelizes, férias frustradas e carreiras fracassadas, mas sim das melhores possibilidades em cada um des­ses campos. Havia algo que vislumbramos no primeiro instante de encantamento e que simplesmente desapa­rece quando o anseio se torna realidade. Acho que todos sabem do que estou falando. A esposa pode ser uma boa esposa, os hotéis e a paisagem podem ter sido excelen­tes, e talvez a Química seja uma bela profissão: algo, po­rém, nos escapou. Ora, existem duas maneiras erradas, e uma certa, de lidar com esse fato.
(1) A Via do Tolo —
Ele põe a culpa nas próprias coisas. Passa a vida toda a conjectutar que, se arranjasse outra mulher, fizesse uma viagem mais cara, ou seja lá o que for, conseguiria dessa vez capturar essa coisa mis­teriosa que todos nós procuramos. A maior parte dos ri­cos entediados e descontentes do nosso mundo são des­se tipo. Eles passam a vida toda pulando de uma mulher para outra (com a ajuda dos tribunais), de continente para continente, de passatempo para passatempo, sempre na esperança de que o último será, enfim, "a coisa certa", e sempre decepcionados.
(2) A Via do "Homem Sensato" Desiludido - Logo ele conclui que tudo não passava de conversa fiada. "E bem verdade", diz ele, "que, quando é jovem, a pessoa se sente assim. Quando chega à minha idade, porém, você desiste de buscar o fim do arco-íris." Então, ele se acomoda, aprende a não esperar muito da vida e repri­me a parte de si mesmo que, nas suas palavras, costuma­va "uivar para a lua". Essa é, sem dúvida, uma via bem melhor que a primeira; torna o homem mais feliz e não faz dele um problema para a sociedade. Tende a torná-lo um chato (sempre pronto a se achar superior diante dos que julga "adolescentes"), mas, de maneira geral, faz com que ele leve uma vida sem grandes sobressaltos. Seria a melhor opção se o homem não tivesse uma vida eter­na. Mas suponha que a felicidade infinita realmente exis­ta e esteja logo ali, à nossa espera. Suponha que real­mente seja possível alcançar o fim do arco-íris — nesse caso, seria uma pena descobrir tarde demais (imediata­mente após a morte) que, por causa do nosso suposto "bom senso", sufocamos em nós mesmos a faculdade de gozar dessa felicidade.
(3) A Via Cristã - Dizem os cristãos: "As criaturas não nascem com desejos que não podem ser satisfeitos. Um bebê sente fome: bem, existe o alimento. Um pati­nho gosta de nadar: existe a água. O homem sente o de­sejo sexual: existe o sexo. Se descubro em mim um dese­jo que nenhuma experiência deste mundo pode satis­fazer, a explicação mais provável é que fui criado para um outro mundo. Se nenhum dos prazeres terrenos satis­faz esse desejo, isso não prova que o universo é uma tre­menda enganação. Provavelmente, esses prazeres não existem para satisfazer esse desejo, mas só para desper­tá-lo e sugerir a verdadeira satisfação. Se assim for, tenho de tomar cuidado, por um lado, para nunca desprezar as bênçãos terrenas nem deixar de ser grato por elas; por outro, para nunca tomá-las pelo 'algo a mais' do qual são apenas a cópia, o eco ou a miragem, Tenho de man­ter viva em mim a chama do desejo pela minha verda­deira terra natal, a qual só encontrarei depois da morte; e jamais permitir que ela seja arrasada ou caia no esque­cimento. Tenho de fazer com que o principal objetivo de minha vida seja buscar essa terra e ajudar as outras pessoas a buscá-la também."
Não devemos nos preocupar com os irônicos que tentam ridicularizar a esperança cristã do "Paraíso" di­zendo que "não querem passar a eternidade tocando har­pa". A resposta que devemos dar a essas pessoas é que, se elas não entendem os livros que são escritos para adultos, não devem palpitar sobre eles. Todas as imagens das Escrituras (as harpas, as coroas, o ouro etc.) são, ob­viamente, uma tentativa simbólica de expressar o inexprimível. Os instrumentos musicais são mencionados porque, para muita gente (não todos), a música é o ob­jeto conhecido nesta vida que mais fortemente sugere o êxtase e a infinitude. A coroa é mencionada para nos dar a entender que todo aquele que estiver reunido com Deus na eternidade tem parte no seu esplendor, no seu poder e na sua alegria. O ouro é citado para nos dar a idéia da eternidade do Paraíso (o ouro não enferruja) e também da sua preciosidade. As pessoas que entendem esses sím­bolos literalmente poderiam também pensar que, quan­do Cristo nos exortou a ser como as pombas, quis dizer que deveríamos botar ovos.
C.S.LEWIS

domingo, outubro 10, 2010

O fenômeno eleitoral na igreja!

Quando chega a época de eleições parece haver um verdadeiro despertar no chamado "meio evangélico", alardes de candidatos que são a favor das uniões "homossexuais", de aborto, de liberação da maconha ... e por aí adiante chovem via internet e mídia em geral. De repente, todo mundo parece estar preocupado com o futuro da "liberdade religiosa no Brasil", com a influência e avanço nos bastidores de uma possível ditadura (seja ela cubana ... soviética .... venezuelana ... e mais provavelmente a chinesa mesmo), vemos os "grandes homens de deus" (de propósito, minúsculo) chamando a atenção do povo, o desespero toma conta de muitos ...
É engraçado, será que a preocupação destes é mesmo o evangelho, a pureza do mesmo? Ou será que a falta de escrúpulos para tomar dinheiro do povo, para viver uma vida no pecado, para continuarem se escondendo atrás de um suposto evangelho é a verdadeira e única preocupação? Quanto aos santinhos dentro das igrejas, não são os mesmos que elevam a audiência de programas diabólicos e demoníacos como os "big-brothers" da vida ... as fazendas da vida .... e outros iguais, carregados de imoralidade e incentivo ao homossexualismo descarado e coisas ainda piores ....? O que dizer então da quantidade de crentes que não frequentam a igreja durante a semana para ficarem ligados nas novelas imundas e podres divulgadas em todas as emissoras de TV (até aquela, é aquela mesmo - talvez a pior de todas)? É muito engraçado, parece a mim que o medo é de perder certas regalias que o diabo plantou no coração de uma igreja com a cara de Laodicéia (Apoc. 3:14), de perder a chance de viver um evangelho do homem e não o de servo verdadeiro .... aquele que O Mestre nos ensinou! Qual será a nossa verdadeira preocupação? Não, eu não quero um futuro de perseguição à igreja de Jesus, aos meus filhos por exemplo, que estão ainda caminhando na fé cristã, não sou um idiota, mas a perseguição já está aí há muito tempo, os verdadeiros cristãos são perseguidos pelos próprios cristãos (os falsos - infiltrados dentro das igrejas) e olha que são muitos os que já abdicaram da fé autêntica por uma de facilidades e elevação do homem (os apóstolos ... os patriarcas .... os bispos .... e outros lixos auto-denominados hoje em dia que para nada servem a não ser deturpar o evangelho verdadeiro)!
Meu amigo, se você está seguro com Jesus, não há o que temer, pois você não depende de homem algum - presidente, governador ou outro lider qualquer, sua dependência única cabe Ao Senhor! Avivamento verdadeiro é choro e arrependimento de pecados, no altar do Senhor, este é o que nos falta!
Pr. Omar Bianchi - Igreja Batista Renovada Água da Vida - sede - São Paulo !

sexta-feira, outubro 08, 2010

CONDUTA CRISTÃ - 9. A CARIDADE

9. A CARIDADE
Eu disse num capítulo anterior que existem quatro virtudes "cardeais" e três "teológicas". As virtudes teoló­gicas são a fé, a esperança e a caridade. Trataremos da fé nos últimos dois capítulos. A caridade foi exposta par­cialmente no Capítulo 7, em que tratei sobretudo daquela parte dela que se chama perdão. Quero acrescentar ago­ra mais algumas palavras.
Em primeiro lugar, quanto ao significado da palavra. "Caridade" hoje significa simplesmente o que antes se chamava "esmola" — ou seja, o que damos para os po­bres. Originalmente, seu significado era muito mais am­plo. (Você vai entender por que ela ganhou essa acepção moderna: se uma pessoa é "caridosa", dar esmolas aos pobres é uma das coisas mais óbvias que ela faz, e, assim, as pessoas passaram a dar a esse ato o nome da própria virtude. A mesma coisa aconteceu com a poesia, cuja expressão mais óbvia é a rima. Ora, para a maioria das pessoas, hoje, a "rima" é a própria poesia.) A caridade sig­nifica "amor no sentido cristão". Mas o amor no sentido cristão não é uma emoção. Não é um estado do senti­mento, mas da vontade: aquele estado da vontade que temos naturalmente com a nossa pessoa, mas devemos aprender a ter com as outras pessoas.
No capítulo sobre o perdão, observei que o amor que temos por nós mesmos não implica simpatia por nós mesmos. Significa que queremos nosso próprio bem. Do mesmo modo, o amor cristão (ou caridade) em re­lação ao próximo é bem diferente da afinidade ou da afeição. Nós temos "afinidade" ou "afeição" em relação a algumas pessoas, mas não a outras. E importante en­tender que essa "afinidade" ou "gosto" não é nem um pe­cado nem uma virtude, como tampouco o são nossas preferências pessoais de alimentação. É somente um fato. É claro, porém, que nossas atitudes em relação a esses gostos podem ser pecaminosas ou virtuosas.
A afeição natural pelas pessoas torna mais fácil a "ca­ridade" com elas. Por isso, normalmente temos o dever de estimular nossas afeições — de gostar dos outros tan­to quanto pudermos (da mesma maneira que, em geral, temos o dever de estimular em nós o gosto pelo exercí­cio físico ou por alimentos saudáveis) - não por ser em si esse gostar a virtude da caridade, mas por nos ajudar a alcançar esse fim. Por outro lado, é necessário tomar muitíssimo cuidado para que nosso afeto por alguém não nos torne pouco caridosos, ou até mesmo injustos, com outra pessoa. Existem inclusive casos em que nos­sas escolhas afetivas entram em conflito com a caridade em relação à própria pessoa de quem gostamos. Uma mãe extremosa, por exemplo, por causa de sua afeição na­tural, pode ser tentada a "mimar" o filho; ou seja, a dar vazão a seus impulsos afetivos à custa da verdadeira fe­licidade da criança mais tarde.
Normalmente, a afeição natural deve ser encorajada. No entanto, seria um erro pensar que o caminho para se obter a caridade consiste em sentar-se e tentar fabri­car bons sentimentos. Certas pessoas são "frias" por temperamento; isso pode ser um azar para elas, mas é tão pecaminoso quanto ter problemas de digestão — ou seja, não é pecado. Isso não lhes tira a oportunidade nem as exime do dever de aprender a caridade. A regra co­mum a todos nós é perfeitamente simples. Não perca tempo perguntando-se se você "ama" o próximo ou não; aja como se amasse. Assim que colocamos isso em prá­tica, descobrimos um dos maiores segredos. Quando você se comporta como se tivesse amor por alguém, logo começa a gostar dessa pessoa. Quando faz mal a alguém de quem não gosta, passa a desgostar ainda mais dessa pes­soa. Já se, por outro lado, lhe fizer um bem, verá que a aversão diminui. Existe, porém, uma exceção a essa re­gra. Se você lhe fizer um bem, não para agradar a Deus e obedecer à lei da caridade, mas para lhe mostrar como você é uma pessoa capaz de perdoar, para lhe deixar em dívida e para sentar-se à espera de manifestações de "gratidão", provavelmente vai decepcionar-se. (As pes­soas não são bobas: elas têm um olho clínico para to­das as formas de exibicionismo ou condescendência pa­ternalista.) Sempre, porém, que fizermos o bem ao pró­ximo por ser ele um "eu" igual a nós, criado por Deus, que deseja sua própria felicidade como nós desejamos a nossa, teremos aprendido a amá-lo um pouco mais ou, no mínimo, a desgostar dele um pouco menos.
Conseqüentemente, apesar de a caridade cristã pa­recer fria para as pessoas cujas cabeças estão cheias de sentimentalismo, e apesar de ser bem diferente da afeição, ela nos conduz a este sentimento. A diferença entre um cristão e um ímpio não é que este tem afeições e gos­tos pessoais ao passo que o cristão só tem a "caridade". O ímpio trata bem certas pessoas porque "gosta" delas; o cristão, tentando tratar a todos com bondade, tende a gostar de um número cada vez maior de pessoas no decorrer do tempo — inclusive de pessoas de quem ele não poderia imaginar que um dia fosse gostar.
A mesma lei espiritual funciona de maneira terrí­vel no sentido oposto. Pode ser que os alemães, de início, maltratassem os judeus porque os odiassem; depois, passaram a odiá-los ainda mais por tê-los maltratado. Quanto mais cruel você é, mais ódio você terá; quanto mais ódio tiver, mais cruel será - e assim para sempre, num círculo vicioso perpétuo.
O Bem e o Mal aumentam ambos à velocidade dos juros compostos. E por isso que as pequenas decisões que eu ou você tomamos todos os dias têm tanta im­portância. O menor gesto de bondade feito hoje garante a conquista de um ponto estratégico a partir do qual, em alguns meses, você poderá alcançar vitórias nunca sonhadas. Já uma concessão aparentemente trivial à luxúria ou à ira significa a perda de uma colina, de uma li­nha férrea ou de uma cabeça de ponte a partir das quais o inimigo poderá lançar um ataque que, de outro modo, seria inviável.
Alguns escritores usam a palavra "caridade" para de­signar não somente o amor cristão entre seres humanos, mas também o amor de Deus pelo homem e o amor do homem por Deus. As pessoas costumam preocupar-se mais com este último. Ouviram dizer que devem amar a Deus, mas elas não encontram esse amor dentro de si. O que devem fazer? A resposta é a mesma de antes. Aja como se você amasse. Não fique sentado tentando fabricar esse sentimento. Pergunte a si mesmo: "Se es­tivesse certo de que amasse a Deus, o que eu faria?" Quando encontrar a resposta, vá e faça.
No geral, o amor de Deus por nós é um tema mui­to mais seguro que o nosso amor por ele. Ninguém con­segue ter sempre o sentimento de devoção: e, mesmo que conseguisse, não são os sentimentos que mais im­portam a Deus. O amor cristão, seja para com Deus, seja para com os homens, é um assunto da vontade. Se nos esforçamos para obedecer à sua vontade, estamos cum­prindo o mandamento "Amarás o Senhor teu Deus". Ele nos dará o sentimento do amor se assim desejar. Não podemos criá-lo por nós mesmos nem podemos exigi-lo como se fosse um direito nosso. Porém, a grande coisa a se lembrar é que, apesar de nossos sentimentos irem e virem, o amor dele por nós não se altera. Não se des­gasta por causa dos nossos pecados nem por nossa in­diferença. Logo, é inflexível em sua determinação de que seremos curados desses pecados custe o que custar, seja para nós, seja para ele.
C.S.LEWIS

sexta-feira, outubro 01, 2010

CONDUTA CRISTÃ - 8. O GRANDE PECADO



8. O GRANDE PECADO
Chego agora à parte em que a moral cristã difere mais nitidamente de todas as outras morais. Existe um ví­cio do qual homem algum está livre, que causa repug­nância quando é notado nos outros, mas do qual, com a exceção dos cristãos, ninguém se acha culpado. Já ouvi quem admitisse ser mau humorado, ou não ser capaz de resistir a um rabo de saia ou à bebida, ou mesmo ser covarde. Mas acho que nunca ouvi um não-cristão se acusar desse vício. Ao mesmo tempo, é raríssimo encon­trar um não-cristão que tenha alguma tolerância com esse vício nas outras pessoas. Não existe nenhum outro defeito que torne alguém tão impopular, e mesmo as­sim não existe defeito mais difícil de ser detectado em nós mesmos. Quanto mais o temos, menos gostamos de vê-lo nos outros.
O vício de que estou falando é o orgulho ou a pre­sunção. A virtude oposta a ele, na moral cristã, é cha­mada de humildade. Você deve se lembrar de que, quan­do falávamos sobre a moralidade sexual, adverti que não era ela o centro da moral cristã. Bem, agora chegamos ao centro. De acordo com os mestres cristãos, o vício fun­damental, o mal supremo, é o orgulho. A devassidão, a ira, a cobiça, a embriaguez e tudo o mais não passam de ninharias comparadas com ele. É por causa do orgulho que o diabo se tornou o que é. O orgulho leva a todos os outros vícios; é o estado mental mais oposto a Deus que existe.
Parece que estou exagerando? Se você acha que sim, pense um pouco mais no assunto. Agora há pouco, ob­servei que, quanto mais orgulho uma pessoa tem, me­nos gosta de vê-lo nos outros. Se quer descobrir quão orgulhoso você é, a maneira mais fácil é perguntar-se: "Quanto me desagrada que os outros me tratem como inferior, ou não notem minha presença, ou interfiram nos meus negócios, ou me tratem com condescendência, ou se exibam na minha frente?" A questão é que o or­gulho de cada um está em competição direta com o orgu­lho de todos os outros. Se me sinto incomodado por­que outra pessoa fez mais sucesso na festa, é porque eu mesmo queria ser o grande sucesso. Dois bicudos não se beijam. O que quero deixar claro é que o orgulho é es­sencialmente competitivo — por sua própria natureza -, ao passo que os outros vícios só o são acidentalmente, por assim dizer. O prazer do orgulho não está em se ter algo, mas somente em se ter mais que a pessoa ao lado. Dizemos que uma pessoa é orgulhosa por ser rica, inte­ligente ou bonita, mas isso não é verdade. As pessoas são orgulhosas por serem mais ricas, mais inteligentes e mais bonitas que as outras. Se todos fossem igualmente ri­cos, inteligentes e bonitos, não haveria do que se orgu­lhar. É a comparação que torna uma pessoa orgulhosa: o prazer de estar acima do restante dos seres. Eliminado o elemento de competição, o orgulho se vai. E por isso que eu disse que o orgulho ê essencialmente competitivo de uma forma que os outros vícios não são. O impulso sexual pode levar dois homens a competir se ambos es­tão interessados na mesma moça. Mas a competição ali é acidental; eles poderiam, com a mesma facilidade, ter se interessado por moças diferentes. Um homem orgu­lhoso, porém, fará questão de tomar a sua garota, não por desejá-la, mas para provar para si mesmo que é me­lhor do que você. A cobiça pode levar os homens a com­petir entre si se não existe o suficiente para todos; mas o homem orgulhoso, mesmo que tenha mais do que ja­mais poderia precisar, vai tentar acumular mais ainda só para afirmar seu poder. Praticamente todos os males no mundo que as pessoas julgam ser causados pela cobi­ça ou pelo egoísmo são bem mais o resultado do orgulho. Veja a questão do dinheiro. A cobiça pode fazer com que o homem deseje ganhar dinheiro para comprar uma casa melhor, poder viajar nas férias e ter coisas mais apetitosas para comer e beber. Mas só até certo ponto. O que faz com que um homem que ganha 10.000 li­bras por ano fique ansioso para ganhar 20.000 libras? Não é a cobiça de mais prazer. A soma de 10.000 libras pode sustentar todos os luxos de que ele queira desfrutar. É o orgulho — o desejo de ser mais rico que os outros ricos e, mais do que isso, o desejo de poder. Pois, evi­dentemente, é do poder que o orgulho realmente gos­ta: nada faz o homem sentir-se tão superior aos outros quanto o fato de poder movê-los como soldadinhos de brinquedo. Por que uma moça bonita à caça de admi­radores espalha a infelicidade por onde quer que vá? Cer­tamente não é por causa de seu instinto sexual: esse tipo de moça é quase sempre sexualmente frígida. É o orgulho. O que faz um líder político ou uma nação inteira quererem expandir-se indefinidamente, exigindo tudo para si? De novo, o orgulho. Ele é competitivo pela pró­pria natureza: é por isso que se expande indefinidamen­te. Se sou um homem orgulhoso, enquanto existir al­guém mais poderoso do que eu, ou mais rico, ou mais es­perto, esse será meu rival e meu inimigo.
Os cristãos estão com a razão: o orgulho é a causa principal da infelicidade em todas as nações e em todas as famílias desde que o mundo foi criado. Os outros ví­cios podem, às vezes, até mesmo congregar as pessoas: pode haver uma boa camaradagem, risos e piadas entre gente bêbada ou entre devassos. O orgulho, porém, sem­pre significa a inimizade - é a inimizade. E não só ini­mizade entre os homens, mas também entre o homem e Deus.
Em Deus defrontamos com algo que é, em todos os aspectos, infinitamente superior a nós. Se você não sabe que Deus é assim — e que, portanto, você não é nada comparado a ele -, não sabe absolutamente nada sobre Deus. O homem orgulhoso sempre olha de cima para baixo para as outras pessoas e coisas: é claro que, fazen­do assim, não pode enxergar o que está acima de si.
Isso levanta uma questão terrível. Como podem exis­tir pessoas evidentemente cheias de orgulho que decla­ram acreditar em Deus e se consideram muitíssimo reli­giosas? Infelizmente, elas adoram um Deus imaginário. Na teoria, admitem que não são nada comparadas a esse Deus fantasma, mas na prática passam o tempo todo a imaginar o quanto ele as aprova e as tem em melhor con­ta que ao resto dos comuns mortais. Ou seja, pagam al­guns tostões de humildade imaginária para receber uma fortuna de orgulho em relação a seus semelhantes. Suponho que é a esse tipo de gente que Cristo se referia quando dizia que pregariam e expulsariam os demônios em seu nome, mas no final ouviriam dele que jamais os conhecera. Cada um de nós, a todo momento, vê-se diante dessa armadilha mortal. Felizmente, temos como saber se caímos nela ou não. Sempre que constatamos que nossa vida religiosa nos faz pensar que somos bons — sobretudo, que somos melhores que os outros —, po­demos ter certeza de que estamos agindo como mario­netes, não de Deus, mas do diabo. A verdadeira prova de que estamos na presença de Deus é que nos esque­cemos completamente de nós mesmos ou então nos ve­mos como objetos pequenos e sujos. O melhor é esque­cer-nos de nós mesmos.
É uma coisa terrível que o pior de todos os vícios insinue-se assim no próprio centro de nossa vida religio­sa. Mas é fácil saber por que isso acontece. Todos os vícios menores vêm do diabo quando trabalha sobre o nosso lado animal. Este vício, porém, não nasce em absoluto da nossa natureza animal. Vem diretamente do infer­no. E puramente espiritual: conseqüentemente, muito mais sutil e perigoso. Pela mesma razão, o orgulho é usa­do com freqüência para vencer os vícios mais simples. Os professores, que sabem disso, apelam costumeiramente para o orgulho dos meninos, ou, como dizem, para seu amor-próprio, a fim de fazê-los comportar-se direito. Mais de um homem conseguiu superar a covar­dia, a luxúria ou o mau humor pela crença inculcada de que tudo isso estava abaixo da sua dignidade. Ou seja, venceram pelo orgulho. O diabo ri às gargalhadas. Fica satisfeitíssimo de nos ver castos, corajosos e controla­dos desde que, em troca, prepare para nós uma Dita­dura do Orgulho. Do mesmo modo, ele ficaria contente de curar as frieiras dos nossos pés se pudesse, em troca, nos deixar com câncer. O orgulho é um câncer espiri­tual: ele corrói a possibilidade mesma do amor, do con­tentamento e até do bom senso.
Antes de sair deste assunto, é bom me resguardar de certos mal-entendidos:
(1) O prazer do elogio não é orgulho. A criança que recebe um tapinha nas costas por fazer bem o dever de casa, a mulher cuja beleza é elogiada pelo marido, a alma salva para quem Cristo diz "Muito bem": todos ficam contentes, e têm todo o direito de ficar. Em cada uma dessas situações, as pessoas não se comprazem naquilo que são, mas no fato de terem agradado a alguém que (pelos motivos corretos) queriam agradar. O problema começa quando você deixa de pensar "Eu o agradei: tudo está bem", e substitui esse pensamento por outro: "Eu sou mesmo uma pessoa magnífica por ter feito isso." Quanto mais você se compraz em si mesmo e menos no elogio, pior você fica. Quando todo o seu deleite vem de você mesmo e você não se importa mais com o elogio, chegou ao fundo do poço. É por isso que a vaidade, em­bora seja o tipo de orgulho mais visível no exterior, é também o menos grave e mais facilmente perdoável. A pessoa vaidosa deseja demais o elogio, o aplauso, a ad­miração, e está sempre em busca dessas coisas. É um de­feito - mas é um defeito quase infantil e (estranhamen­te) bastante modesto. Demonstra que a pessoa não está inteiramente satisfeita com a admiração que nutre por si mesma. Levando em conta a opinião alheia, ela mos­tra que ainda valoriza um pouco as outras pessoas. Em resumo, ela ainda é humana. O orgulho diabólico nas­ce quando desprezamos tanto os outros que não mais le­vamos em consideração o que pensam de nós. Eviden­temente, é corretíssimo, e às vezes é nosso dever, não nos importar com a opinião dos outros, mas sempre pelo motivo correto, ou seja, porque nos importamos infi­nitamente mais com a opinião de Deus. Já o homem orgulhoso tem um motivo diferente para não se impor­tar. Ele pensa: "Por que devo me importar com o aplau­so da plebe se a opinião dela não vale nada? Mesmo se valesse, não sou de ficar corado por causa de um cumpri­mento como se fosse uma mocinha em seu primeiro baile. Não; sou dono de uma personalidade adulta e integrada. Tudo o que fiz foi para satisfazer meus pró­prios ideais - ou minha consciência artística — ou minha tradição familiar - ou, resumindo, porque Eu Sou O Tal. Se a turba gosta ou não, o problema é dela. Ela não vale nada para mim." Dessa maneira, o orgulho plena­mente desenvolvido pode até coibir a vaidade; como eu disse agora há pouco, o diabo adora "curar" um de­feito menor com um maior. Devemos nos esforçar para não sermos vaidosos, mas não devemos jamais nos valer do orgulho para curar a vaidade.
(2) Dizemos, em inglês [ou em português], que um homem tem "orgulho" de seu filho, de seu pai, de sua escola, de seu regimento. Podemos nos perguntar se, nes­se caso, o "orgulho" é um pecado. Acho que isso depende do que queremos dizer com "ter orgulho de algo". Com muita freqüência, essa expressão significa "ter uma calo­rosa admiração por algo ou alguém". Tal admiração, evi­dentemente, está bem distante do pecado. Mas talvez sig­nifique que a pessoa "empine o nariz" por ter um pai ilus­tre ou pertencer a um regimento famoso. Isso com certe­za é um defeito; mesmo nesse caso, entretanto, é melhor isso que ter orgulho de si mesmo. Amar e admirar algo exterior a nós mesmos é um passo para longe da ruína espiritual, desde que esse amor e admiração não sobre­pujem o que sentimos por Deus.
(3) Não devemos julgar que Deus proibiu o orgu­lho porque ele o ofende, ou que a humildade nos foi prescrita por causa de sua dignidade — como se o próprio Deus fosse orgulhoso. Ele não está nem um pouco preocupado com sua dignidade. A questão é simples: ele quer que nós o conheçamos, quer se doar para nós. O ser humano e ele são feitos de tal modo que, no mo­mento em que efetivamente entramos em contato com ele, nos sentimos de fato humildes: deliciosamente hu­mildes, aliviados de uma vez por todas do fardo das fal­sas crenças sobre nossa dignidade, que só serviam para nos deixar desassossegados e infelizes. Deus tenta nos tornar humildes para que esse momento seja possível: o momento de lançarmos fora a tola e horrenda fantasia com que nos adornamos e que nos entravava os movi­mentos, enquanto a exibíamos por aí feito idiotas. Gos­taria de ter mais experiência da humildade. Assim, pro­vavelmente poderia falar mais sobre o alívio e o consolo de despir essa fantasia - de lançar fora esse falso eu, com todos os seus "Olhem para mim" e "Eu sou um bom menino, não sou?", todas as suas poses e falsas postu­ras. O mero fato de estar próximo disso, ainda que por um breve momento, é tão reconfortante quanto um gole de água fresca no deserto.
(4) Não pense que, se você conhecer um homem verdadeiramente humilde, ele será o que as pessoas cha­mam de "humilde" hoje em dia: não será nem uma pes­soa submissa ou bajuladora, que vive lhe dizendo que não é nada. Provavelmente, o que você vai pensar dele é que se trata de um camarada animado e inteligente, que realmente se interessou pelo que você tinha a lhe di­zer. Se você não simpatizar com ele, será porque sente um pouco de inveja de alguém que parece contentar-se tão facilmente com a vida. Ele não estará pensando so­bre a humildade; não estará pensando em si mesmo de modo algum.
Se alguém quer adquirir a humildade, creio poder dizer-lhe qual é o primeiro passo: é reconhecer o pró­prio orgulho. Aliás, é um grande passo. O mínimo que se pode dizer é que, se ele não for dado, nada mais po­derá ser feito. Se você acha que não é presunçoso, isso sig­nifica que você é presunçoso demais.
C.S.LEWIS

sábado, setembro 25, 2010

CONDUTA CRISTÃ - 7. O PERDÃO


Eu disse no capítulo anterior que a castidade era a menos popular das virtudes cristãs. Mas não estou tão certo disso. Acredito que haja uma virtude ainda me­nos popular, expressa na regra cristã "Amarás a teu pró­ximo como a ti mesmo". Porque, na moral cristã, "amar o próximo" inclui "amar o inimigo", o que nos impin­ge o odioso dever de perdoar nossos inimigos.
Todos dizem que o perdão é um ideal belíssimo até terem algo a perdoar, como nós tivemos durante a guer­ra. Nesse momento, a simples menção do assunto é re­cebida com bramidos de ódio. Não é que as pessoas julguem essa virtude muito elevada e difícil de praticar: , julgam-na, isto sim, odiosa e desprezível. "Essa conversa nos dá nojo", dizem. E metade de vocês já deve estar querendo me perguntar: "E, se você fosse judeu ou po­lonês, perdoaria a Gestapo?"
Eu também me faço essa pergunta. Faço-a muitas vezes. Do mesmo modo, quando o cristianismo me diz que não posso negar minha religião mesmo que seja para me salvar da morte pela tortura, pergunto-me muitas vezes qual seria minha atitude numa situação dessas. Neste livro, não quero lhe dizer o que eu faria — aliás, o que posso fazer é bem pouco —, mas sim o que é o cris­tianismo. Não fui eu que o inventei. E ali, bem no meio dele, encontro as palavras: "Perdoa as nossas dívidas, as­sim como perdoamos aos nossos devedores." Não há a menor insinuação de que exista outra maneira de obter­mos o perdão. Está perfeitamente claro que, se não per­doarmos, não seremos perdoados. Não há alternativa. O que podemos fazer?
Vai ser difícil de qualquer modo, mas creio que exis­tem duas coisas que podemos fazer para facilitar um pouco as coisas. Quando vamos estudar matemática, não começamos pelo cálculo integral, mas pela simples arit­mética. Da mesma maneira, se realmente queremos (e tudo depende dessa vontade real) aprender a perdoar, o melhor talvez seja começar com algo mais fácil que a Gestapo. Você pode começar por perdoar seu marido ou esposa, seus pais ou filhos ou o funcionário público mais próximo por tudo o que fizeram e disseram na sema­na passada. Isso já vai lhe dar trabalho. Em segundo lu­gar, você deve tentar entender exatamente o que signi­fica amar o próximo como a si mesmo. Tenho de amá-lo como amo a mim mesmo. Bem, como é exatamente esse amor a mim mesmo?
Agora que começo a pensar no assunto, vejo que não nutro exatamente um grande afeto nem tenho especial predileção pela minha pessoa, e nem sempre gosto da minha própria companhia. Aparentemente, portanto, "amar o próximo" não significa "ter grande simpatia por ele" nem "considerá-lo um grande sujeito". Isso já de­veria ser evidente, pois não conseguimos gostar de al­guém por esforço. Será que eu me considero um bom camarada? Infelizmente, às vezes sim (e esses são, sem dú­vida, meus piores momentos), mas não é por esse moti­vo que amo a mim mesmo. Na verdade, o que acontece é o inverso: não é por considerar-me agradável que amo a mim mesmo; é meu amor próprio que faz com que eu me considere agradável. Analogamente, portanto, amar meus inimigos não é o mesmo que considerá-los boas pessoas. O que não deixa de ser um grande alívio, pois muita gente imagina que perdoar os inimigos significa concluir que eles, no fim das contas, não são tão maus assim, ao passo que é evidente que são. Vamos dar um passo adiante. Nos meus momentos de maior lucidez, vejo que não somente não sou lá um grande sujeito como posso ser uma péssima pessoa. Recuo com horror e repugnância diante de certas coisas que fiz. Logo, isso parece me dar o direito de me sentir horrorizado e repugnado diante dos atos de meus inimigos. Aliás, pen­sando no assunto, lembro que os primeiros mestres cris­tãos já diziam que se devem odiar as ações de um ho­mem mau, mas não odiar o próprio homem; ou, como eles diriam, odiar o pecado, mas não o pecador.
Por muito tempo julguei essa distinção tola e insig­nificante: como se pode odiar o que um homem faz e não odiá-lo por isso? Somente anos depois me ocorreu que fora exatamente essa a conduta que eu sempre ti­vera com uma pessoa em particular: eu mesmo. Por mais que eu abominasse minha covardia, vaidade ou cobiça, continuei amando a mim mesmo. Nunca tive a menor dificuldade para isso. Na verdade, a razão mesma pela qual detestava tais coisas é que amava o homem que as co­metia. Por amar a mim mesmo, sentia um profundo pe­sar por agir assim. Conseqüentemente, o cristianismo não quer ver reduzida a um átomo a aversão que sentimos pela crueldade e pela deslealdade. Devemos odiá-las. Não devemos desdizer nada do que dissemos a esse res­peito. Porém, devemos odiá-las da mesma forma que odiámos nossos próprios atos: sentindo pena do homem que as praticou e tendo, na medida do possível, a esperança de que, de alguma forma, em algum tempo e lu­gar, ele possa ser curado e se tornar novamente um ser humano.
A verdadeira prova é a seguinte: suponha que você leia no jornal uma reportagem sobre atrocidades ignominiosas e que, no final, se revele que a reportagem era falsa ou que as atrocidades não eram tão terríveis quanto na primeira versão. Qual será sua reação? Será "graças a Deus, nem eles são capazes de tanta maldade"? Ou você ficará decepcionado, disposto até a continuar acre­ditando na primeira reportagem pelo simples prazer de continuar julgando seus inimigos tão maus quanto pos­sível? Se for a segunda reação, infelizmente você dará o primeiro passo de um processo que, no final, o trans­formará num demônio. E fácil notar que a pessoa que agiu assim está começando a desejar que a escuridão seja um pouco mais escura. Se dermos vazão a esse tipo de sentimento, logo estaremos desejando que a penumbra também seja escura, e, depois, que a própria claridade seja negra. No final, insistiremos em ver tudo — inclusi­ve Deus, nossos amigos e nós mesmos — como maus, e não seremos capazes de parar. Estaremos presos para sempre num universo de puro ódio.
Vamos dar um passo além. Será que amar o inimigo quer dizer que não devemos puni-lo? Não, de maneira alguma. O amor que sinto por mim não me exime do dever de me submeter à punição — nem mesmo à morte. Se você cometesse um assassinato, a coisa correta a fa­zer, segundo o cristianismo, seria entregar-se à polícia para ser enforcado. Na minha opinião, portanto, é per­feitamente correto que um juiz cristão sentencie um homem à morte ou que um soldado cristão mate o ini­migo em combate. Sempre pensei assim, desde que me tornei cristão e desde muito antes da guerra, e meu pen­samento não mudou em nada agora que estamos em paz. Não vai adiantar citar "Não matarás". Existem no grego duas palavras: uma geral para matar, e outra es­pecífica para assassinar. Quando Cristo pronunciou esse mandamento, ele usou a palavra equivalente a assassinar nos três relatos: em Mateus, Marcos e Lucas. Disseram-me que a mesma distinção existe no hebraico. Nem todo ato de matar é assassinato, da mesma forma que nem todo ato sexual é adultério. Quando os soldados se dirigiram a João Batista perguntando-lhe o que fazer, ele nem de longe sugeriu que abandonassem o exército; tampouco o fez Cristo quando conheceu um sargento-mor romano — que eles chamavam de centurião. O ideal do cavaleiro — o cristão armado na defesa de uma boa causa - é um dos grandes ideais cristãos. A guerra é uma coisa terrível e tenho respeito pelos pacifistas ho­nestos, apesar de achar que eles estão redondamente en­ganados. O que não consigo entender é esse semipacifismo de hoje em dia, que dá às pessoas a idéia de que, apesar de ser nosso dever lutar, devemos fazê-lo desola­dos, como se estivéssemos envergonhados desse ato. Não é outro o sentimento que rouba um grande número de nossos magníficos jovens cristãos, jovens que se alista­ram e que têm toda justificativa para lutar, de algo que é a conseqüência natural da coragem — uma espécie de brio, júbilo e entusiasmo.
Penso com freqüência no que teria acontecido se, durante a Primeira Guerra Mundial, quando servi como soldado, eu e um jovem alemão matássemos um ao ou­tro e nos encontrássemos logo depois da morte. Não consigo imaginar que nenhum de nós sentisse um pingo de ressentimento ou de embaraço. Creio que, juntos, daríamos boas risadas.
Imagino que alguém dirá: "Bem, se podemos con­denar os atos do inimigo, puni-lo e mesmo matá-lo, qual é então a diferença entre a moral cristã e a moral co­mum?" Toda a diferença do mundo. Lembre-se de que nós, cristãos, acreditamos que o homem vive eterna­mente. Logo, o que realmente importa são as pequenas marcas deixadas e as pequenas mudanças feitas na parte central e interior da alma, as quais vão nos tornar, a longo prazo, numa criatura celestial ou infernal. Talvez sejamos obrigados a matar, mas não devemos alimentar o ódio nem gostar de odiar. Podemos punir, se isso for necessário, mas não devemos gostar de punir. Em outras pa­lavras, os sentimentos de ressentimento e de vingança de­vem ser simplesmente exterminados de dentro de nós. Bem sei que ninguém tem o poder de decidir que, des­te momento em diante, não terá tais sentimentos. As coisas não acontecem assim. Quero somente dizer que, toda vez que esses sentimentos levantarem a cabeça, de­vemos espancá-la — dia após dia, ano após ano, até o fim da nossa vida. É um trabalho árduo, mas não é im­possível tentar executá-lo. Mesmo no momento em que castigamos ou matamos o inimigo, devemos sentir por ele o mesmo que sentimos por nós — devemos desejar que ele não seja mau; devemos ter a esperança de que algum dia, neste mundo ou em outro, ele venha a curar-se. Falando claramente, devemos desejar o seu bem. E isso que a Bíblia quer dizer com o amor ao próximo: desejar o seu bem, sem ter de sentir afeto nem dizer que ele é gentil quando não é.
Admito que isso significa amar pessoas que não têm nada de amáveis. Mas pergunto: será que eu mesmo sou uma pessoa digna de ser amada? Amo a mim mes­mo simplesmente porque sou eu mesmo. Deus quer que amemos a todas as criaturas, todos os "eus", da mesma forma e pela mesma razão: apenas, no caso pessoal de cada um, já deu o resultado certo da conta para nos en­sinar como é que se soma. Devemos, a partir disso, aplicar a regra a todas as outras pessoas. Talvez isso se tor­ne mais fácil se lembrarmos que é dessa forma que ele nos ama. Não pelas belas qualidades que julgamos pos­suir, mas simplesmente porque cada um de nós é um "eu". Pois, na realidade, não existe mais nada em nós que seja digno de amor: nós, que encontramos um prazer tão grande no ódio que abdicar dele é mais difícil que largar a bebida ou o cigarro...
C.S.LEWIS

segunda-feira, setembro 20, 2010

CONDUTA CRISTÃ - 6. O CASAMENTO CRISTÃO

6. O CASAMENTO CRISTÃO
O capítulo anterior foi quase todo negativo. Nele discuti o que há de errado com o impulso sexual no ho­mem, mas falei muito pouco sobre seu funcionamento correto - em outras palavras, sobre o casamento cristão. Há duas razões pelas quais não quis abordar o tema do casamento. A primeira é que a doutrina cristã sobre o as­sunto é extremamente impopular. A segunda é que nun­ca fui casado, e, portanto, não posso falar sobre ele por experiência própria. Apesar disso, sinto que não posso deixar este assunto de lado num sumário da moral cristã.
A idéia cristã de casamento se baseia nas palavras de Cristo de que o homem e a mulher devem ser con­siderados um único organismo - tal é o sentido que as palavras "uma só carne" teriam numa língua moderna. Os cristãos acreditam que, quando disse isso, ele não estava expressando um sentimento, mas afirmando um fato — da mesma forma que expressa um fato quem diz que o trinco e a chave são um único mecanismo, ou que o violino e o arco formam um único instrumento mu­sical. O inventor da máquina humana queria nos dizer que as duas metades desta, o macho e a fêmea, foram feitas para combinar-se aos pares, não simplesmente na esfera sexual, mas em todas as esferas. A monstruosidade da relação sexual fora do casamento é que, cedendo a ela, tenta-se isolar um tipo de união (a sexual) de todos os outros tipos de união que deveriam acompanhá-la para compor a união total. A atitude cristã não toma como errada a existência de prazer no sexo, como não considera errado o prazer que temos quando nos alimen­tamos. O erro está em querer isolar esse prazer e tentar buscá-lo por si mesmo, da mesma maneira que não se deve buscar os prazeres do paladar sem engolir e digerir a comida, apenas mastigando-a e cuspindo-a.
Em conseqüência, o cristianismo ensina que o ca­samento deve durar a vida toda. Neste ponto, é claro que existem diferenças entre as diversas Igrejas: algumas não admitem o divórcio em hipótese alguma; outras o admitem com relutância em casos específicos. É uma grande lástima que os cristãos divirjam quanto a essa questão; para um leigo, porém, o fato a notar é que, no que diz respeito ao casamento, todas as Igrejas concor­dam muito mais umas com as outras do que concordam com o que vem do mundo exterior. Todas encaram o divórcio como se fosse algo que cortasse ao meio um or­ganismo vivo, como um tipo de cirurgia. Algumas acham que essa cirurgia é tão violenta que não deve ser feita de forma alguma. Outras a admitem como um recurso desesperado em casos extremos. Todas asseveram que o di­vórcio se parece mais com a amputação das pernas do corpo do que com a dissolução de uma sociedade co­mercial ou mesmo com o ato de deserção de um soldado. O que todas elas repudiam é a visão moderna de que o divórcio é simplesmente um reajustamento de parcei­ros, a ser feito sempre que as pessoas não se sentem mais apaixonadas uma pela outra, ou quando uma de­las se apaixona por outra pessoa.
Antes de analisar essa visão moderna e sua relação com a castidade, não devemos deixar de considerar sua relação com outra virtude - a saber, a justiça. A justiça, como eu disse antes, inclui a fidelidade à própria pala­vra. Todos os que se casaram na igreja fizeram a promes­sa pública e solene de permanecer unidos até a morte. O dever de cumprir essa promessa não tem nenhum vínculo especial com a moralidade sexual: ela está em pé de igualdade com qualquer outra promessa. Se, como as pessoas hoje em dia insistem em dizer, o impulso se­xual é igual a todos os outros impulsos, então deve ser tratado em pé de igualdade com eles. Assim como o gozo de todo e qualquer impulso é controlado por nos­sas promessas, assim deve ser o gozo do impulso sexual. No entanto, se, segundo penso, ele não é igual a nossos demais impulsos, mas encontra-se morbidamente in­flamado, devemos ter mais cautela para que ele não nos leve à desonestidade.
Certas pessoas podem retrucar dizendo que consi­deram a promessa feita na igreja uma simples formali­dade, a qual nunca tencionaram cumprir. A quem, en­tão, pretendiam enganar quando fizeram tal promessa? A Deus? Isso não é nada sensato. A si mesmas? Isso não é muito mais sensato que a alternativa anterior. Enganar a noiva, o noivo, os sogros? Isso é traição. É mais fre­qüente, na minha opinião, o casal (ou um deles) querer enganar o público. Quer a respeitabilidade que vem do casamento sem ter de pagar por isso: ou seja, são impostores, são enganadores. Se essas pessoas são desonestas e não se preocupam com isso, não tenho nada a lhes dizer. Quem poderia adverti-las a seguir o nobre, mas penoso, dever da castidade, se elas não pretendem nem mesmo ser honestas? Caso recobrassem a razão, a pró­pria promessa feita as constrangeria. Tudo isso, como você pode notar, está circunscrito ao âmbito da justiça, e não da castidade. Se as pessoas não acreditam em ca­samento para sempre, talvez seja melhor viver juntas sem estar casadas que fazer uma promessa que não pre­tendem cumprir. É claro que, ao viver juntas sem estar unidas pelo matrimônio, elas são culpadas de fornicação (sob o ponto de vista cristão). Uma falta, porém, não conserta a outra: a falta de castidade não é mino­rada quando a ela se acrescenta o perjúrio.
A idéia de que "estar enamorado" é o único motivo válido para permanecer casado é totalmente contrária à idéia do matrimônio como um contrato ou mesmo como uma promessa, Se tudo se resume ao amor, o ato da promessa nada lhe acrescenta; e, assim, nem deveria ser feito. Uma coisa curiosa é que os próprios amantes, enquanto permanecem apaixonados, sabem disso mui­to mais que os que só falam de amor. Como observou Chesterton (Gilbert Keith Chesterton (1874-1936), escritor cristão inglês.), os apaixonados têm a tendência natural de fazer promessas um ao outro. As canções de amor do mundo inteiro estão repletas de juras de fidelidade eter­na. A lei cristã não exige do amor algo que é alheio à sua natureza: exige apenas que os amantes levem a sério algo que a própria paixão os impele a fazer.
E é evidente que a promessa de ser fiel para sem­pre, que fiz quando estava apaixonado e porque o estava, deve ser cumprida mesmo que deixe de estar. A promes­sa diz respeito a ações, a coisas que posso fazer: ninguém pode fazer a promessa de ter um determinado senti­mento para sempre. Seria o mesmo que prometer nunca mais ter dor de cabeça ou nunca mais ter fome. Pode-se perguntar, no entanto, qual o sentido de manter uni­das duas pessoas que não se amam mais. Existem várias razões sociais bem fundamentadas para tanto: dar um lar para os filhos, proteger a mulher (que provavelmen­te sacrificou a carreira pelo casamento) de ser trocada por outra quando o marido se cansar dela. Existe, no entanto, um outro motivo do qual estou bastante con­vencido, mesmo que o julgue difícil de explicar.
E difícil porque tanta gente não consegue se dar con­ta de que, mesmo que "B" seja melhor que "C", talvez "A" seja melhor que ambos. As pessoas gostam de racio­cinar com os termos "bom" e "mau", não com os ter­mos "bom", "melhor" e "o melhor de todos", e "ruim", "pior" e "o pior de todos". Elas perguntam se você jul­ga o patriotismo uma coisa boa; se você responde que ele é muito melhor que o egoísmo dos indivíduos, mas bastante inferior à caridade universal, e que deve ceder lugar a esta sempre que os dois estiverem em conflito, elas acham sua resposta evasiva. Perguntam o que você acha dos duelos. Se você responde que é muito melhor um homem perdoar o próximo que duelar com ele, mas que o duelo pode ser uma alternativa melhor que uma inimizade eterna, expressa no esforço secreto de causar a ruína do oponente, elas se queixam de que você não ofe­receu uma resposta franca e direta. Espero que ninguém cometa o mesmo erro com o que tenho a dizer agora. O que chamamos de "estar apaixonado" é um esta­do maravilhoso e, sob diversos aspectos, benéfico para nós. Ajuda-nos a ser mais generosos e corajosos, abre nos­sos olhos não apenas para a beleza do objeto amado, mas para toda a beleza, e subordina (especialmente no início) nossa sexualidade animal; nesse sentido, o amor é o grande subjugador do desejo. Ninguém que tenha o uso perfeito da razão negaria que estar apaixonado é melhor que a sensualidade ordinária ou o frio egocen­trismo. Mas, como eu disse antes, "a coisa mais perigosa que podemos fazer é tomar um certo impulso de nossa natureza como padrão a ser seguido custe o que custar". Estar apaixonado é muito bom, mas não é a melhor coisa do mundo. Existem muitas coisas abaixo, mas tam­bém muitas outras acima disso. A paixão amorosa não pode ser a base de uma vida inteira. É um sentimento nobre, mas, mesmo assim, é apenas um sentimento. Não podemos nos fiar em que um sentimento vá con­servar para sempre sua intensidade total, ou mesmo que vá perdurar. O conhecimento perdura, como também os princípios e os hábitos, mas os sentimentos vêm e vão.
E, o que quer que as pessoas digam, a verdade é que o estado de paixão amorosa normalmente não dura. Se o velho final dos contos de fadas: "E viveram felizes para sempre", quisesse dizer que "pelos cinqüenta anos seguin­tes sentiram-se atraídos um pelo outro como no dia anterior ao casamento", estaria se referindo a algo que não acontece na realidade, que não pode acontecer e que, mesmo que pudesse, seria pouquíssimo recomendável. Quem conseguiria viver nesse estado de excitação mes­mo por cinco anos? Que seria do trabalho, do apetite, do sono, das amizades? E claro, porém, que o fim da pai­xão amorosa não significa o fim do amor. O amor nesse segundo sentido - distinto da "paixão amorosa" - não é um mero sentimento. É uma unidade profunda, man­tida pela vontade e deliberadamente reforçada pelo há­bito; é fortalecida ainda (no casamento cristão) pela graça que ambos os cônjuges pedem a Deus e dele re­cebem. Eles podem fruir desse amor um pelo outro mes­mo nos momentos em que se desgostam, da mesma for­ma que amamos a nós mesmos mesmo quando não gos­tamos da nossa pessoa. Conseguem manter vivo esse amor mesmo nas situações em que, caso se descuidas­sem, poderiam ficar "apaixonados" por outra pessoa. Foi a "paixão amorosa" que primeiro os moveu a jurar fidelidade recíproca. O amor sereno permite que cum­pram o juramento. E através desse amor que a máquina do casamento funciona: a paixão amorosa foi a fagulha que a pôs em funcionamento.
Se você discorda de mim, é claro que vai dizer: "Ele não sabe do que está falando. Ele nem é casado." Talvez você tenha razão. Antes de dizer isso, porém, tome o cuidado de embasar seu julgamento nas coisas que você conhece por experiência pessoal ou pela obser­vação de seus amigos, e não em idéias derivadas de ro­mances ou de filmes. Isso não é tão fácil de fazer quanto as pessoas pensam. Nossa experiência é preenchida pelas cores dos livros, peças de teatro e filmes do cinema, e é necessário ter paciência para delas desentranhar e para separar o que aprendemos da vida por nós mesmos.
As pessoas tiram dos livros a idéia de que, se você casou com a pessoa certa, viverá "apaixonado" para sem­pre. Como resultado, quando se dão conta de que não é isso o que ocorre, chegam à conclusão de que comete­ram um erro, o que lhes daria o direito de mudar - não percebem que, da mesma forma que a antiga paixão se desvaneceu, a nova também se desvanecerá. Nesse de­partamento da vida, como em qualquer outro, a excita­ção é própria do início e não dura para sempre. A emoção intensa que um garoto tem quando pensa em aprender a pilotar um avião não sobrevive quando ele se junta à Força Aérea, onde realmente vai aprender o que é voar. A palpitação de conhecer um lugar novo se esvai quando se passa a morar lá. Acaso quero dizer que não devemos aprender a voar ou não devemos morar num lugar apra­zível? De jeito nenhum. Em ambos os casos, se você perseverar, o arrepio da novidade, quando morre, é com­pensado por um interesse mais sereno e duradouro. Além disso (e mal consigo lhe dizer o quanto isto é importan­te), são exatamente as pessoas dispostas a sofrer a perda do frêmito inicial e a acatar esse interesse mais sóbrio que têm maior probabilidade de encontrar novas emo­ções em campos diferentes. O homem que aprendeu a voar e se tornou um bom piloto subitamente descobre a música; o homem que se estabeleceu num local idílico descobre a jardinagem.
Segundo me parece, essa é uma pequena parte do que Cristo quis dizer quando afirmou que nada pode viver realmente sem antes morrer. Simplesmente não vale a pena tentar manter viva uma sensação forte e fu­gaz: é a pior coisa que podemos fazer. Deixe o frisson ir embora — deixe-o morrer. Se você passar por esse perío­do de morte e penetrar na felicidade mais discreta que o segue, passará a viver num mundo que a todo tempo lhe dará novas emoções. Mas, se fizer das emoções for­tes a sua dieta diária e tentar prolongá-las artificialmen­te, elas vão se tornar cada vez mais fracas, cada vez mais raras, até você virar um velho entediado e desiludido para o resto da vida. É por serem tão poucas as pessoas que entendem isso que encontramos tantos homens e mulheres de meia-idade lamentando a juventude per­dida, na idade mesma em que novos horizontes deve­riam descortinar-se e novas portas deveriam abrir-se. É muito mais divertido aprender a nadar que tentar resga­tar incessantemente (e inutilmente) a sensação da pri­meira vez que chapinhamos na água quando garotos.
Outra idéia que apreendemos de romances e peças de teatro é que a paixão amorosa é algo irresistível, algo que simplesmente "contraímos", como sarampo. Por acre­ditar nisso, certas pessoas casadas largam tudo e se atiram a um novo amor quando se sentem atraídas por alguém. Penso, porém, que essas paixões irresistíveis são muito mais raras na vida real que nos livros, pelo menos depois de chegarmos à idade adulta. Quando conhecemos uma pessoa bonita, inteligente e bem-humorada, é claro que devemos, num certo sentido, admirar e amar essas belas qualidades. Porém, não cabe a nós em boa medida julgar se esse amor deve ou não dar lugar ao que chamamos de paixão amorosa? Sem dúvida, se nossa cabeça está cheia de romances, peças e canções sentimentalistas, e nosso corpo está cheio de álcool, vamos tender a transformar qualquer amor nesse tipo específico de amor, da mesma forma que, se houver uma valeta junto à estrada num dia de chuva, toda a água vai correr por ela, ou, se você esti­ver usando um par de óculos de lentes azuis, tudo ficará azulado. A culpa será sua.
Antes de deixar a questão do divórcio, gostaria de esclarecer a distinção entre duas coisas que geralmente se confundem. Uma delas é a concepção cristã de casa­mento; a outra, completamente diferente, é se os cris­tãos, enquanto eleitores ou membros do Parlamento, de­vem impor sua visão do casamento sobre o restante da comunidade, incorporando essa visão às leis estatais que regem o divórcio. Um grande número de pessoas pare­ce pensar que, se você é cristão, deve tentar tornar o di­vórcio difícil para todo o mundo. Eu não penso assim. Pelo menos creio que ficaria bastante zangado se os mu­çulmanos tentassem proibir que o restante da popula­ção tomasse vinho. Minha opinião é que as Igrejas devem reconhecer francamente que a maioria dos britâ­nicos não são cristãos, e, portanto, não se deve esperar que levem uma vida cristã. Deve haver dois tipos dis­tintos de casamento: um governado pelo Estado, com regras aplicáveis a todos os cidadãos, e outro governa­do pela Igreja, com regras que ela mesma aplica a seus membros. A distinção entre os dois tipos deve ser bas­tante nítida, de tal forma que se saiba sem sombra de dúvida quais casais são casados pela Igreja e quais não.
Isso já é o bastante a respeito da doutrina cristã da indissolubilidade do casamento. Resta tratar de outra coisa, ainda menos popular. As esposas cristãs fazem o voto de obedecer a seus maridos. No casamento cristão, diz-se que os homens são a "cabeça". Duas questões ob­viamente se levantam. (1) Por que a necessidade de uma "cabeça" — por que não a igualdade? (2) Por que a "cabeça" deve ser o homem?
(1) A necessidade de uma cabeça segue-se da idéia de que o casamento é permanente. É claro que, na me­dida em que o marido e a esposa estão de acordo, a ne­cessidade de um líder desaparece; e gostaríamos que esse fosse o estado de coisas normal no casamento cristão. Mas, quando existe um desacordo real, o que se deve fa­zer? Conversar sobre o assunto, é claro; estou partindo da idéia de que tentatam fazer isso e mesmo assim não conseguiram chegar a um acordo. O que fazer então? O casal não pode decidir por votação, pois não existe maioria absoluta entre duas pessoas. Certamente, uma das duas coisas pode acontecer: podem separar-se e cada um ir para o seu lado, ou então uma das partes deve ter o poder de decisão. Se o casamento é permanente, uma das duas partes deve, em última instância, ter o poder de decidir a política familiar. Não se pode ter uma asso­ciação permanente sem uma constituição.
(2) Se há a necessidade de um líder, por que o ho­mem? Em primeiro lugar, pergunto: existe uma vontade generalizada de que isso caiba à mulher? Como eu dis­se, não sou casado, mas, pelo que vejo, nem mesmo a mulher que quer ser a chefe de sua própria casa admira essa situação quando a observa na casa ao lado. Nessas circunstâncias, costuma exclamar: "Pobre sr. X! Por que ele se deixa dominar por aquela mulherzinha horrível? Isso está acima da minha compreensão." Também não penso que ela fique lisonjeada quando alguém mencio­na o fato de ser ela a "cabeça". Deve haver algo de anti-natural na proeminência das esposas sobre os maridos, pois as próprias esposas ficam bastante envergonhadas disso e desprezam o marido que se submete. Porém, há mais uma razão, e sobre ela falo francamente a partir da minha condição de solteiro, pois pode ser vista me­lhor por quem está de fora que por quem está dentro. As relações da família com o mundo exterior - o que poderíamos chamar de política externa — devem de­pender, em última análise, do homem, porque ele deve ser, e normalmente é, mais justo em relação às pessoas de fora. A mulher luta prioritariamente pelos filhos e pelo marido contra o resto do mundo. Naturalmente e, em certo sentido, quase com razão, as necessidades de­les são priorizadas em detrimento de todas as outras ne­cessidades. A mulher é a curadora especial dos interes­ses da família. A função do marido é garantir que essa predisposição natural da mulher não chegue a predo­minar. Ele tem a última palavra para proteger as outras pessoas do intenso patriotismo familiar da esposa. Se al­guém duvida de mim, deixe-me fazer uma pergunta simples. Se seu cachorro mordeu a criança da casa ao lado, ou se seu filho machucou o cachorro do vizinho, com quem você prefere tratar — com o chefe da família ou com a dona da casa? E, se você é uma mulher casada, deixe-me fazer outra pergunta. Apesar de admirar seu marido, você não diria que a falha principal dele está em não fazer valer os direitos da família contra os dos vizinhos tão vigorosamente quanto você gostaria? Não seria ele apaziguador demais?

C.S.LEWIS